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24 de abr. de 2012

Vingança, justiça restaurativa e perdão


"(...) Modelos matemáticos do surgimento da cooperação mostram que a punição vingativa é necessária para que as sociedades sejam estáveis. Se não castigamos os 'free-riders', aqueles que tentam se aproveitar dos esforços comunitários sem dar nada em troca, não há convivência possível. (...)

Para quebrar o ciclo das rixas e vendetas motivadas pela vingança, inventamos o Estado, mais especificamente, a ideia de que o poder público é a única parte legítima para 'fazer justiça' e exercer o monopólio da violência. É uma forma inteligente de manter a punição sem criar um desentendimento que poderia dar lugar a uma nova rodada de violência. Quando eu sou castigado pelo Estado impessoal e não por um rival odiado, fica muito mais fácil renunciar ao impulso de acertar as contas com o inimigo. (...)

A vingança é apenas parte da história. De par com ela vem o perdão. Pinker afirma que ele foi inicialmente menosprezado por psicólogos e biólogos, mas se revelou inesperadamente importante quando analisado à luz da teoria dos jogos.

O perdão, afinal, permite restabelecer a cooperação que tenha sido rompida por uma resposta equivocada ou mesmo por uma leitura errada das intenções da pessoa com quem interagimos. Não fosse por ele, todos os rompimentos seriam definitivos e poderiam dar ensejo a espirais intermináveis de hostilidades. É mais ou menos o que acontece no Oriente Médio. 

Pelo menos em tese, poderíamos tentar mobilizar o mecanismo do perdão para pacificar as torcidas. Em contextos diferentes, isso já foi experimentado e leva o nome de justiça restaurativa. (...)"

(Hélio Schwartsman, trechos de "Torcidas homicidas")
Comentário
Esse assunto vale para contextos tão amplos como de brigas entre países soberanos, grupos de interesses/gostos opostos (torcidas de futebol) e mesmo relacionamentos entre indivíduos (amizades e paixões).

O problema, sempre, é identificar os limites do perdão (em quais circunstâncias vale a pena dar nova chance a uma pessoa ou grupo) e compreender qual o papel da justiça como aprendizado e punição, de modo a não apenas tentar reparar um erro, mas evitar que o perpetrador repita o comportamento no futuro.

E é aí que está o grande dilema.

Não podemos prever o futuro e não temos segurança sobre qual a melhor decisão a tomar em cada situação, que possa garantir uma punição ou um perdão justos, ou seja, que gerem como resultado o verdadeiro arrependimento e a melhoria comportamental futura.

Creio que todos podemos errar e essa falibilidade do ser humano é algo a considerar. Por isso não desprezo o valor do perdão e a possibilidade do arrependimento sincero.

Por outro lado, também não podemos ser ingênuos para acreditar que todo perdão irá resultar numa melhoria da situação. Às vezes, a melhor forma de ensinar uma pessoa que algo foi errado é justamente punindo-a socialmente. Essa é uma grande dificuldade principalmente nos relacionamentos pessoais, quando precisamos "romper vínculos" com pessoas que nos machucaram.

Não é realmente algo fácil. E depende de cada indivíduo e de suas experiências - há pessoas que só aprendem algo quando tal situação acontece diretamente com elas, ou seja, elas não têm a capacidade de seguir a regra de ouro (não faça aos outros o que não gostaria que fizessem a você) a priori pois não conseguem se colocar no lugar das outras.

Precisamos compreender, portanto, que pessoas interesseiras e canalhas existem e provavelmente sempre existirão na humanidade (espero que em menor número ao longo do tempo...). Só que elas não precisam sempre levar vantagem, e aí que está o principal papel das boas pessoas e do Estado. Tudo vai depender da punição ou perdão que escolhermos.

É difícil identificar "maus elementos"? Às vezes sim, mas geralmente é mais fácil do que imaginamos. O problema são nossos sentimentos atrapalhando a capacidade racional de identificar com cuidado as verdadeiras intenções por trás de cada ação realizada.

É triste, mas já cansei de ver pessoas perdoando atos simplesmente injustificáveis ou mesmo entrando em relacionamentos com pessoas cujo mau caráter é claro e conhecido por todos. Nesses casos, o resultado mais provável (eu diria em 99,99% das vezes...) é que a pessoa mau caráter não vai mudar, infelizmente, e a razão é bem simples: ela continua conseguindo sempre o perdão (prévio ou posterior) sobre seus atos, mesmo sem mudar seu comportamento (ou apenas "prometendo mudar", que é uma estratégia de jogar para o futuro incerto algo que ela sabe que nunca irá realmente fazer).

Mas a esperança de quem perdoa - alimentada não pela razão, mas pelo sentimento puro - faz o ser humano escolher o caminho do perdão (irracional) mesmo quando tudo indicaria que não é a melhor opção.

Isso ocorre pois ficamos cegos de paixão ou de outros sentimentos, e assim não julgamos com a razão sensível e nem mesmo a razão pura: julgamos apenas com uma expectativa ou justificativainstintiva, que pode ou não gerar um bom resultado (e, lamento informar, será um mero acaso se o resultado der certo...).

Esse sentimento (isolado da razão), portanto, nos impede de enxergar em que casos vale a pena perdoar e em quais a melhor maneira de promover justiça é com uma punição social (afastamento, pelo menos).

Por outro lado, uma razão puramente "técnica" (sem sentimentos) também nos impediria de perceber que há erros causados pelas nossas emoções e que precisam ser levados em conta na decisão de perdoar ou punir. Como já bem disse Eduardo Galeano, a solução está no meio termo: "Temos que raciocinar e sentir. Eu acredito nessa fusão contraditória entre o que se sente e o que se pensa".

O que não podemos, contudo, é esquecer do que está por trás de nossa decisão de punir e de perdoar. Estamos fazendo justiça ou deixando de fazê-la, e isso gera consequências nos atos futuros de todos nós. É um escolha inteiramente nossa e temos uma responsabilidade por causa disso, não apenas conosco, não apenas com o outro, mas com toda a humanidade.

Portanto, pensemos bem antes de tomar uma decisão que irá magoar alguém. Pensemos bem antes de perdoar alguém que, de forma recorrente ou claramente intencional, magoa os outros e vive prometendo que "vai mudar", "com você vai ser diferente" e coisas desse gênero hipotético.

Atos sempre valem mais que palavras em questões éticas. Não esqueçamos disso.

Compreendamos, enfim, que não é preciso ser vingativo para fazer justiça. Às vezes, apenas precisamos isolar aquelas pessoas que nos fazem mal. Assim, talvez, essas más pessoas um dia realmente aprendam e percebam que fizeram algo muito errado - injusto e imoral - e que, por causa dessa escolha, perderam a chance de ter um relacionamento verdadeiro na vida.

Acredito que essa é a punição mais concreta e justa que alguém pode receber.

Essa punição gera um aprendizado duradouro. Não precisamos nos sentir mal e nem vingativos: devemos compreender que o outro talvez mereça sim nova chance, mas que, por mais doloroso que possa nos ser, essa nova chance não pode ser ao nosso lado (pois, caso deixemos que se aproximem novamente, há o risco de a pessoa repetir o comportamento, uma vez que a punição não teria sido efetiva - os efeitos teriam sido insuficientes, já que ela conseguiu de volta o que tinha perdido).

Ou seja, a pessoa que errou ainda pode se "regenerar" mas, para isso, terá que procurar novos relacionamentos. É um perdão parcial somado a uma punição justa (a nova chance não será comigo, e isso fortalece o sentimento de justiça e evitará a recorrência do erro). Isso me parece mais adequado para incentivar a evolução comportamental.

Mas alerto: não acho que há regra pronta, cabe a cada um levar esses pontos em consideração nas suas situações pessoais, e o sentimento é algo que não deve ser menosprezado. De todo modo, acredito que o melhor perdão às vezes precisa ser aquele que nos afasta de alguém de quem ainda gostamos.

Esse é o custo de tentarmos criar um mundo verdadeiramente melhor, fazendo a nossa parte e pensando não apenas em benefício próprio, mas numa melhoria moral de todos.

Deixo, por fim, um alerta: as pessoas que vemos "levando vantagem" por aí, gerando dor e sofrimento em tanta gente, fazem isso por diversas razões egoístas. Mas elas só repetem esse comportamento por uma simples razão: nós não estamos sabendo puni-las socialmente como deveríamos, e infelizmente perdoamos e justificamos (pelas razões erradas) coisas que não deveríamos perdoar totalmente.

Se não começarmos a enxergar as verdadeiras intenções por trás dos atos, se não dermos valor para as boas pessoas, se insistirmos no erro de valorizar e dar repetidas chances para aqueles que não merecem, o resultado será esse: as pessoas canalhas e egoístas nunca irão mudar e continuarão tranquilamente a machucar tanta gente.



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Livros & Informes

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  • AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
  • ALBUQUERQUE, Teresa Lancry de Gouveia de; ROBALO, Souza. Justiça Restaurativa: um caminho para a humanização do direito. Curitiba: Juruá, 2012. 304p.
  • AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de. A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006.
  • CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
  • FERREIRA, Francisco Amado. Justiça Restaurativa: Natureza. Finalidades e Instrumentos. Coimbra: Coimbra, 2006.
  • GERBER, Daniel; DORNELLES, Marcelo Lemos. Juizados Especiais Criminais Lei n.º 9.099/95: comentários e críticas ao modelo consensual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
  • Justiça Restaurativa. Revista Sub Judice - Justiça e Sociedade, n. 37, Out./Dez. 2006, Editora Almedina.
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