Pesquisar este blog

8 de jul. de 2013

Nelson Mandela e a Justiça Restaurativa

Nestes dias em que o mundo segue com reverente atenção o que parece ser o fim da vida de uma das pessoas mais queridas e admiradas dos últimos tempos, Nelson Mandela, que ganhou um lugar proeminente na história universal por sua liderança na libertação de seu povo do ignominioso sistema do apartheid, queria fazer referência a uma das contribuições mais significativas de seu legado, a colocação em prática da justiça restaurativa.
A reportagem é do pastor Francisco Rodés, coordenador nacional da Pastoral da Capelania Carcerária do Conselho de Igrejas de Cuba (CIC), e publicada no sítio da Agencia Latino-Americana y Caribeña de Comunicación, 04-07-2013. A tradução é do Cepat.
Quando, no curso para a formação de capelães nas prisões, entramos na matéria da chamada justiça restaurativa (o que nos introduz num mundo conceitual diferente da justiça punitiva, baseada no código penal de cada país, que pensa apenas em esclarecer e castigar adequadamente o crime), nos demos conta de que a primeira, sem anular radicalmente a anterior, enfoca uma análise mais ampla, que inclui respostas às perguntas: quem foi prejudicado? Que responsabilidade deriva do prejuízo? Que se pode fazer pela vítima? Como a comunidade se envolve em um processo de restauração tanto do ofensor como da vítima? Pode parecer, no início da discussão, que navegamos em um mundo conceitual muito idealista, com poucas possibilidades reais de uma colocação em prática.
Felizmente, temos à mão o exemplo dado ao mundo por Nelson Mandela ao derrubar o vexatório sistema imposto pela minoria branca, colonialista e racista. Muitos pensaram que ao o primeiro presidente negro assumir a presidência da República da África do Sul, explodiria um novo ciclo de violência, agora vingativa contra todos os que cometeram violações e crimes dos direitos humanos. Mas Mandela surpreendeu o mundo anunciando que haveria uma anistia de todos os violadores, mas na condição de que reconhecessem tudo o que haviam feito e pedissem perdão às pessoas e famílias afetadas, assumindo a responsabilidade material pelas consequências do crime.
Com um desafio tão grande, não podemos senão imaginar quão difícil se fazia o caminho a ser trilhado. As feridas estavam frescas, o sangue havia corrido das veias de muitos jovens. Muitas famílias não perdoariam facilmente aqueles que haviam arrebatado a um de seus filhos. Foi um processo complexo e difícil, do qual toda a comunidade teve que participar e, de uma maneira especial, os próprios ministros religiosos, como mediadores. Sem dúvida, foi um processo de cura doloroso, testemunhado por alguns filmes que conseguiram captar as dramáticas cenas. Mas foi a salvação da África do Sul, o fim da espiral de violência, o começo de uma vida de unidade nacional e de paz.
Certa ocasião, no corredor de uma prisão, um interno relativamente jovem aproximou-se de mim e puxou conversa. Contou-me que havia cumprido 14 anos de prisão por ter matado sua esposa. O fez bêbado, já que se havia alcoolizado trabalhando em um bar. Mostrava-se otimista sobre sua saída próxima, havia parado definitivamente de beber, estava casado novamente, e sua conduta na prisão lhe valeram uma redução da pena. Eu o felicitei, mas me atrevi a lhe perguntar: “Me diga, pediste perdão à família da sua ex-esposa?”. Ficou calado. Não havia pensado nas feridas que havia causado, em sua responsabilidade. Ele mesmo necessitava da cura interior que traz paz. Disse-lhe: “Há quem foi até a sepultura da vítima para pedir perdão”. Ficou pensativo. O sistema penal o fez crer que sua única dívida era com a instituição carcerária. A justiça restaurativa recorda que não se paga com anos de condenação, mas com uma nova atitude e uma responsabilidade em relação às vítimas.
Os cristãos, às vezes, são responsáveis por pregar um perdão muito barato. É certo que Jesus Cristo nos liberta da culpa diante de Deus, e nos recebe não importa quão grande sejam os nossos pecados. Mas a responsabilidade diante das vítimas de nossos pecados não desaparece automaticamente. Há feridas para curar, o dano infringido a uma pessoa perdura e os frutos amargos podem seguir envenenando as relações humanas para além da geração que o perpetuou.
Por isto, não se pode esquecer facilmente um passado que provocou dor a outros e outras. Jesus nos ensina a tomar a sério a verdadeira restauração: “Se você for até o altar para levar a sua oferta, e aí se lembrar de que o seu irmão tem alguma coisa contra você, deixe a oferta aí diante do altar, e vá primeiro fazer as pazes com seu irmão; depois, volte para apresentar a oferta” (Mt 5, 23-24).
Nelson Mandela constitui-se no maior desafio para o mundo atual, repleto de violências e abusos, do caminho que leva à paz e à reconciliação, o mesmo caminho que há dois mil anos nos mostrava o Mestre da Galileia. Não é um caminho fácil, mas é a única forma de curar as feridas, a única possibilidade para a paz e a restauração das relações quebradas pela injustiça.

Instituto Humanitas Unisinos. 06.07.2013.

Nenhum comentário:

“É chegada a hora de inverter o paradigma: mentes que amam e corações que pensam.” Barbara Meyer.

“Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado opressor.” Desmond Tutu.

“Perdoar não é esquecer, isso é Amnésia. Perdoar é se lembrar sem se ferir e sem sofrer. Isso é cura. Por isso é uma decisão, não um sentimento.” Desconhecido.

“Chorar não significa se arrepender, se arrepender é mudar de Atitude.” Desconhecido.

"A educação e o ensino são as mais poderosas armas que podes usar para mudar o mundo ... se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar." (N. Mandela).

"As utopias se tornam realidades a partir do momento em que começam a luta por elas." (Maria Lúcia Karam).


“A verdadeira viagem de descobrimento consiste não em procurar novas terras, mas ver com novos olhos”
Marcel Proust


Livros & Informes

  • ACHUTTI, Daniel. Modelos Contemporâneos de Justiça Criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
  • AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
  • ALBUQUERQUE, Teresa Lancry de Gouveia de; ROBALO, Souza. Justiça Restaurativa: um caminho para a humanização do direito. Curitiba: Juruá, 2012. 304p.
  • AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de. A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006.
  • CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
  • FERREIRA, Francisco Amado. Justiça Restaurativa: Natureza. Finalidades e Instrumentos. Coimbra: Coimbra, 2006.
  • GERBER, Daniel; DORNELLES, Marcelo Lemos. Juizados Especiais Criminais Lei n.º 9.099/95: comentários e críticas ao modelo consensual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
  • Justiça Restaurativa. Revista Sub Judice - Justiça e Sociedade, n. 37, Out./Dez. 2006, Editora Almedina.
  • KARAM. Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais: a concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
  • KONZEN, Afonso Armando. Justiça Restaurativa e Ato Infracional: Desvelando Sentidos no Itinerário da Alteridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
  • LEITE, André Lamas. A Mediação Penal de Adultos: um novo paradigma de justiça? analise crítica da lei n. 21/2007, de 12 de junho. Coimbra: Editora Coimbra, 2008.
  • MAZZILLI NETO, Ranieri. Os caminhos do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
  • MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Fávio. Criminologia. Coord. Rogério Sanches Cunha. 6. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
  • MULLER, Jean Marie. Não-violência na educação. Trad. de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Atenas, 2006.
  • OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A Vítima e o Direito Penal: uma abordagem do movimento vitimológico e de seu impacto no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
  • PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM, 2009. p. (Monografias, 52).
  • PRANIS, Kay. Processos Circulares. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • RAMIDOFF, Mario Luiz. Sinase - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - Comentários À Lei N. 12.594, de 18 de janeiro de 2012. São Paulo: Saraiva, 2012.
  • ROLIM, Marcos. A Síndrome da Rainha Vermelha: Policiamento e segurança pública no século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2006.
  • ROSA, Alexandre Morais da. Introdução Crítica ao Ato Infracional - Princípios e Garantias Constitucionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
  • SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: Introdução a uma Leitura Externa do Direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
  • SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo. Curitiba: Juruá, 2009.
  • SANTANA, Selma Pereira de. Justiça Restaurativa: A Reparação como Conseqüência Jurídico-Penal Autônoma do Delito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
  • SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 2. ed. Curitiba: Lumen Juris/ICPC, 2006.
  • SCURO NETO, Pedro. Sociologia Geral e Jurídica : introdução à lógica jurídica, instituições do Direito, evolução e controle social. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
  • SHECAIRA, Sérgio Salomão; Sá, Alvino Augusto de (orgs.). Criminologia e os Problemas da Atualidade. São Paulo: Atlas, 2008.
  • SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal - O Novo Modelo de Justiça Criminal e de Gestão do Crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
  • SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006.
  • SLAKMON, Catherine; VITTO, Renato Campos Pinto De; PINTO, Renato Sócrates Gomes (org.). Justiça Restaurativa: Coletânea de artigos. Brasília: Ministério da Justiça e PNUD, 2005.
  • SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia Clínica e Psicologia Criminal. prefácio Carlos Vico Manãs. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
  • SÁ, Alvino Augusto de; SHECAIRA, Sérgio Salomão (Orgs.). Criminologia e os Problemas da Atualidade. São Paulo: Atlas, 2008.
  • VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. São Paulo: Método, 2008.
  • VEZZULLA, Juan Carlos. A Mediação de Conflitos com Adolescentes Autores de Ato Infracional. Florianópolis: Habitus, 2006.
  • WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo (org.). Novos Diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
  • WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de. Dialogos sobre a Justiça Dialogal: Teses e Antiteses do Processo de Informalização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
  • ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.