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31 de mar. de 2014

Justiça Restaurativa em El Salvador e lições para o Brasil

O VI Tribunal Internacional para a aplicação da justiça restaurativa em El Salvador tratou das vítimas e sobreviventes do Massacre do Rio Lempa.


Na semana que antecedeu o cinquentenário do Golpe Militar no Brasil também foi realizado – de 26 a 29 de março – o VI Tribunal Internacional para a aplicação da justiça restaurativa em El Salvador tratando das vítimas e sobreviventes do Massacre do Rio Lempa (Comunidade Santa Marta-Cabañas) ocorrido em março de 1981 e que vitimou mais de 400 pessoas em rota de fuga durante a guerra civil salvadorenha.

Formado por juristas nacionais e internacionais especialistas em matéria de justiça transicional, o Tribunal Internacional conheceu casos de graves violações aos direitos humanos como massacres, execuções sumárias, desaparecimento forçado e torturas sofridas antes e durante o conflito armado que assolou o país entre 1981 e 1991.

O conflito gerou 12 anos de estagnação em termos de desenvolvimento e nunca foi declarado oficialmente, mas teve como opositores, de um lado, as Forças Armadas (FFAA) e, de outro, as forças insurgentes da Frente Farabundo Martí para a Liberação Nacional (FMLN) que contestava as injustiças sociais, políticas e econômicas da época. As consequências humanas e sociais foram nefastas, mais de 75 mil mortos, a grande maioria por massacres cometidos pelas forças armadas do governo contra a população civil não combatente, especialmente mulheres, crianças e idosos. As cifras de desaparecimentos forçados estão estimadas entre 20 e 40 mil pessoas, de acordo com diferentes medições e mais de um milhão e meio de habitantes foram obrigados a emigrar a outros países ou passaram por situações forçadas de deslocamento interno.

A violência teve fim com a celebração de uma série de acordos, mediados pelas Nações Unidas e firmados em 16 de janeiro de 1992 (Acordos de Paz de Chapultepec) e com a criação de uma Comissão da Verdade. Para além do “cessar fogo”, este marco de paz significou um pacote de reformas estruturais divididas em cinco áreas fundamentais com o objetivo de dar impulso ao que se chamou de “virada histórica rumo à democratização do país”: desmilitarização e subordinação das forças armadas ao controle civil, criação da Polícia Nacional Civil e da Academia Nacional de Segurança Pública, modificações no sistema judicial e no sistema de proteção de direitos humanos, modificações no sistema eleitoral com a criação do Tribunal Superior Eleitoral e a reintegração dos direitos políticos e civis aos dirigentes do FMLN.

A Comissão da Verdade recebeu mais de 23 mil denúncias e escolheu 32 casos considerados exemplares pela densidade de sua violência, tendo emitido múltiplas recomendações. Grande parte delas não foi cumprida, entre as quais muitas das relativas à restauração da memória e da verdade sobre os acontecimentos sucedidos durante o conflito, especialmente o “direito à justiça” na sua dimensão punitiva de investigação e condenação dos perpetradores pelos crimes de lesa humanidade e pelos crimes continuados de desaparecimento forçado.

Em 1993 foi promulgada a Lei de Anistia que, pela forma e o contexto no qual foi aprovada, não significou outra coisa que mais um exemplo de “leis de auto anistia” ou “leis do esquecimento ou de ponto final”, com o objetivo de instituir a impunidade impedindo a responsabilização pelos massacres e outras violações gravíssimas.

Passado mais de vinte anos desde o fim do conflito e dos acordos de paz, a sociedade salvadorenha segue polarizada política e socialmente, como comprovam as recentes eleições que deram a vitória apertada ao FMLN – o ex guerrilheiro Sanchez Cerén foi eleito por uma diferença de 6.364 votos em relação ao candidato da ARENA, Norman Quijano – e os temas de reparação, memória e justiça são tratados com dificuldade e pouco apoio institucional e governamental.

Como resposta à generalizada inércia estatal e à negativa reiterada por parte dos poderes públicos em cumprirem com sua responsabilidade em matéria de direitos humanos – responsabilidades emanadas tanto da Constituição, como de normas e compromissos internacionais – a sociedade civil, por meio de organizações de direitos humanos, segue ampliando estratégias públicas e jurídicas para buscar justiça e verdade.

A experiência de um Tribunal restaurativo, que teve sua primeira edição em 2009 por ocasião do 20º aniversário do massacre dos jesuítas e conta com o apoio da Comissão de Anistia do Brasil desde sua fundação e a promoção do IDHUCA e da Universidad Centroamericana Simeon Cañas (UCA), representa uma forma alternativa de aplicação de justiça. A dinâmica de funcionamento contém elementos simbólicos distintos e que outorgam uma capacidade narrativa às vítimas, entre eles a celebração dos juízos no lugar onde ocorreram os massacres e com a participação de membros da comunidade, além de autoridades estatais, atores políticos e organizações não governamentais. As vítimas e sobreviventes são estimulados a falar diante de um público formado fundamentalmente por sua própria comunidade. Nestas condições, são capazes de articular suas memórias, denunciar os responsáveis e construir narrativas que revelam a história de uma localidade.

Famílias completas desapareceram por conta dos massacres, muitas vezes não há possibilidade de resgatar a memória por ausência física de sobreviventes. Os relatos dão notícia dos mais perturbadores testemunhos, os quais incluem torturas extremas, violência sexual, acusações diretas sobre a crueldade e refinamento nas execuções, desaparecimentos forçados associados a outros crimes, como venda de órgãos humanos, tráfico de menores e comércio de seres humanos em redes de adoção.

Nessa quarta edição o Tribunal Internacional foi realizado na Comunidade Santa Marta, Município de Vitoria, departamento de Cabañas, onde em 18 de março de 1981 mais de 400 pessoas, incluindo mulheres, crianças e idosos foram mortos tentando fugir em direção à fronteira de Honduras e seguindo o curso do Rio Lempa. Em rota de fuga, ao chegarem às margens do rio perceberam que as comportas haviam sido abertas dificultando a travessia. Enquanto procuravam formas de cruzar, centenas de pessoas foram atacadas pelo exército salvadorenho com o uso de morteiros, aviões e helicóptero que disparava indiscriminadamente.
 
Os que conseguiam cruzar foram atacados pelo exército hondurenho em operação combinada. O armamento pesado era fornecido pelo governo estadunidense. Dezenas morreram por disparos, outros tantos afogados ou levados pelas águas. Os que conseguiram fugir em “guindas” pelas montanhas foram mortos pelo exército hondurenho em trabalho coordenado com as forças armadas salvadorenhas.

Alguns sobreviventes, acolhidos por Médicos sem Fronteira, por missões católicas de Honduras ou que lograram chegar ao campo de refugiado (Campo Mesa Grande, território hondurenho, mantido pela ACNUR) concordaram em contar sua história diante da comunidade e do Tribunal. São sempre relatos de terror, covardia e desumanidade, crimes de guerra, extermínio e de lesa humanidade cometidos pelo Estado em coordenação com outros governos.

Juridicamente, o direito à verdade encontra fundamento nos artigos 25 e 1º da Convenção Americana de Direitos Humanos, da qual é parte El Salvador e que consagra proteção judicial e o direito a buscar e obter informações. São titulares desse direito tanto as vítimas diretas como as indiretas. A força jurídica do Tribunal também se ampara nos artigos 1º, 28 e 29 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, bem como do artigo 32 da Convenção Americana de Direitos Humanos.

Entre as funções específicas do Tribunal está a de recordar e exigir ao Estado salvadorenho que cumpra com seu dever de reconhecer à pessoa humana como origem e fim de si mesmo; recordar os compromissos plasmados na Constituição com respeito aos direitos fundamentais e o correspondente direito das vítimas a tais direitos, o valor absoluto da vida e da dignidade humana, além de sua responsabilidade pelos compromissos ante o Sistema Interamericano e as sentenças da Corte, o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos da ONU, sem mencionar os princípios imperativos amplamente reconhecidos em matéria de direito internacional humanitário.

O conhecimento da situação extrema de El Salvador, assim como de Honduras e de outros países massacrados pela violência armada permite o distanciamento necessário para a reflexão sobre as consequências da impunidade e a necessária responsabilização dos criminosos para que tais tragédias nunca mais se repitam.

Ainda que sejam realidades diferentes, as experiências de justiça de transição de outros países nos fazem refletir sobre o nosso processo. Tal qual no Brasil, a lei de Anistia é contestada em El Salvador. Nosso país tem responsabilidade em matéria de direitos humanos – emanada tanto da Constituição, como de normas e compromissos internacionais – e também deve decidir se mantém ou não o estado de impunidade que impera com a interpretação da Lei de Anistia de 1979, um tema juridicamente aberto no poder judiciário. Resolver esta questão é fundamental no rol das respostas devidas à comunidade internacional, à ONU, à Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas principalmente à sociedade brasileira demonstrando o compromisso com a superação do legado autoritário.


(*) Paulo Abrão é juiz do Tribunal Internacional para a aplicação da justiça restaurativa em El Salvador e Presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

(**) Carol Proner é juíza do Tribunal Internacional para a aplicação da justiça restaurativa em El Salvador Internacional e Conselheira da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

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“Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado opressor.” Desmond Tutu.

“Perdoar não é esquecer, isso é Amnésia. Perdoar é se lembrar sem se ferir e sem sofrer. Isso é cura. Por isso é uma decisão, não um sentimento.” Desconhecido.

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“A verdadeira viagem de descobrimento consiste não em procurar novas terras, mas ver com novos olhos”
Marcel Proust


Livros & Informes

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