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21 de set. de 2016

Olho no olho é bem melhor do que olho por olho

Marina Dias e Luis Bravo

O conflito, em vez de ser visto com maus olhos, pode ser enxergado por uma lente que amplia suas possibilidades de aprendizado, fortalecendo os laços sociais

Na justiça criminal o Estado assume o lugar da vítima, que é alijada do processo. Sua dor e suas necessidades são desconsideradas, apesar de a intervenção estatal começar a partir de seu trauma. Existe um grande equívoco na crença de que atenção à vítima e a prevenção ao crime se traduzem em mais punição, em penas mais altas.
Num primeiro momento, quando há condenação, talvez aflore alguma percepção de que foi feita justiça. Só que a vítima não foi convidada a participar dessa construção, nem teve a oportunidade de ter uma escuta qualificada. Ela continua sentindo solitariamente a sua dor, relembrando minúcias do trauma sofrido e sendo inundada por muitas perguntas sem respostas. Por outro lado, a opressão que vem da força do Estado em um processo criminal vitimiza o ofensor, dificultando que ele se responsabilize genuinamente pelo mal causado.
Os efeitos do crime reverberam pela comunidade. "O crime não é uma ofensa contra a sociedade, muito menos contra o Estado. Ele é em primeiro lugar uma ofensa contra as pessoas, e é delas que se deve partir”, afirma o professor Howard Zehr, da Universidade Eastern Mennonite, pioneiro em justiça restaurativa. A justiça criminal ignora essa compreensão ao prescrever uma fórmula pré-concebida, indiferente às necessidades e desejos de todos os envolvidos no episódio.
Já a justiça restaurativa, cujas raízes estão em práticas comunitárias ancestrais de transformação de conflitos, traz um novo caminho para lidar com o crime. A partir de um esforço conjunto de reconhecimento, (co)responsabilização, reparação e reintegração, a comunidade desenha as possibilidades de um futuro diferente. Países como Estados Unidos, Nova Zelândia, Colômbia, Bélgica e Irlanda têm experiências muito significativas nesse sentido.
Um bom exemplo vem de uma pequena cidade norte-americana. Um grupo de jovens ateou fogo a uma ponte da cidade. Além de ser um marco histórico, a ponte era um lugar de encontro importante para a comunidade. O episódio gerou grande comoção. As autoridades se manifestaram, os rostos dos autores foram estampados nos jornais. A punição parecia ser a única resposta possível. As famílias dos jovens foram tomadas por um enorme sentimento de culpa e de vergonha, e sofreram com o linchamento público, o que causou uma sensação de injustiça. Suas histórias foram reduzidas a esse episódio.
A despeito do processo criminal, um círculo de justiça restaurativa foi feito entre os autores, seus familiares e representantes da comunidade. Todos tiveram a oportunidade de falar, de expressar o seu luto, nomear suas dores, frustrações e expectativas. Os jovens ouviram, sentiram e também foram escutados. Puderam elaborar tudo aquilo que vinham vivenciando desde o ocorrido. O senso de convivência e pertencimento voltou a vigorar entre eles. A comunidade não desistiu dos jovens. A partir desse encontro, todos puderam olhar para o acontecido, responsabilizar-se, construir uma reparação que fizesse sentido para todos e, com isso, se dedicar a um futuro significativo. Todo esse percurso foi documentado no filme "Burning Bridges”.
O conflito, em vez de ser visto com maus olhos, pode ser enxergado por uma lente que amplia suas possibilidades de aprendizado, fortalecendo os laços sociais. O crime normalmente é resultado de muitas camadas de conflitos e de traumas que precisam ser trazidos à tona, para que seja possível romper a espiral da violência. A energia transformadora desses episódios precisa ser explorada a partir da experiência de construção do justo.
OS PRINCÍPIOS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA PODEM INSPIRAR AS MUDANÇAS NECESSÁRIAS TANTO DENTRO DO JUDICIÁRIO COMO NAS COMUNIDADES, ANTES MESMO DE OS CONFLITOS SEREM JUDICIALIZADOS
Esse novo enfoque devolve às pessoas a autonomia para lidar com conflitos. Situa a justiça próxima das pessoas, permitindo que o conflito seja visto em todas as suas dimensões, inclusive estruturais.
A justiça criminal tradicional é norteada pela pergunta: como o ofensor será punido? Para a justiça restaurativa, o foco está em quem foi afetado pela violência. E são inúmeras perguntas que norteiam o caminho. Como restaurar a ferida aberta? Qual é o caminho para cuidar dos traumas e das dores da vítima, do autor e da comunidade? Qual é a reparação que fará sentido para todos os envolvidos no caso concreto?
Há anos mobilizamos todo o aparato do Estado Penal para impor o sofrimento. A justificativa para essa perversidade é o fato de que o acusado causou dor. Ou seja, a cura para o mal é a perpetuação do mal.
No país, historicamente, os três poderes têm apostado no encarceramento como forma de coibir a criminalidade. No mundo, somos o quarto país com a maior população prisional e temos, em números absolutos, o maior índice de mortes por armas de fogo de pequeno calibre. A composição tanto da população prisional quanto das vítimas de violência letal dá uma dimensão de nossa tragédia cotidiana. Mais da metade é representada por jovens, mais de 70% são negros e a grande maioria é do sexo masculino. Se estamos mandando para os calabouços e para as covas a nossa juventude, não tem como essa política criminal e de segurança pública dar certo. 
É preciso superar o paradigma punitivo que está tão arraigado na sociedade. Não será do dia para a noite, mas os princípios da justiça restaurativa podem inspirar as mudanças necessárias tanto dentro do judiciário como nas comunidades, antes mesmo de os conflitos serem judicializados.
Em maio deste ano, o Ministério da Justiça e o Conselho Nacional de Justiça publicaram documento sobre alternativas penais que preconiza políticas públicas voltadas para o minimalismo penal. Ressalta ainda a importância de se garantir a liberdade de pessoas e a priorização de métodos não judiciais de resolução de conflitos, inclusive a justiça restaurativa. Mais recentemente, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 225, que contém diretrizes para sua implementação e difusão no Poder Judiciário.
Como diz Petronella Boonen, uma das maiores especialistas no tema aqui no Brasil, a metodologia dos círculos de justiça restaurativa permite que a re-pressão ceda lugar à ex-pressão. É hora de se resgatar o sentido de justiça e convivência a partir das pessoas envolvidas: vítima, autor e comunidade afetada. Fazendo do diálogo e da escuta a força motriz da transformação dos conflitos.
Marina Diasadvogada, formada em justiça restaurativa pelo Centro de Direitos Humanos e Educação Popular do Campo Limpo (CDHEP) e em mediação de conflitos pelo Instituto Palas Athena. Membro do Conselho do Instituto de Defesa do Direito de Defesa e do Conselho da Ouvidoria da Defensoria Pública de São Paulo.
Luis Bravoadvogado, possui mestrado (MAS) em Estudos de Paz e Transformação de Conflitos (Universidade da Basileia - Suíça).

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“É chegada a hora de inverter o paradigma: mentes que amam e corações que pensam.” Barbara Meyer.

“Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado opressor.” Desmond Tutu.

“Perdoar não é esquecer, isso é Amnésia. Perdoar é se lembrar sem se ferir e sem sofrer. Isso é cura. Por isso é uma decisão, não um sentimento.” Desconhecido.

“Chorar não significa se arrepender, se arrepender é mudar de Atitude.” Desconhecido.

"A educação e o ensino são as mais poderosas armas que podes usar para mudar o mundo ... se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar." (N. Mandela).

"As utopias se tornam realidades a partir do momento em que começam a luta por elas." (Maria Lúcia Karam).


“A verdadeira viagem de descobrimento consiste não em procurar novas terras, mas ver com novos olhos”
Marcel Proust


Livros & Informes

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  • AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
  • ALBUQUERQUE, Teresa Lancry de Gouveia de; ROBALO, Souza. Justiça Restaurativa: um caminho para a humanização do direito. Curitiba: Juruá, 2012. 304p.
  • AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de. A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006.
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