Pesquisar este blog

2 de out. de 2017

Juíza aposta em justiça restaurativa para trabalhar com famílias vítimas de violência doméstica


Dra. Madgéli Frantz Machado é uma das criadoras do projeto de justiça restaurativa com foco em violência de gênero, no estado | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Fernanda Canofre
Há um ano, Elisabete, 53 anos, chegou ao seu limite. Depois de passar o dia trocando o piso da casa sozinha, juntou os restos de material, colocou-os em uma sacola e a deixou no local onde o lixeiro passaria no dia seguinte. Foi o suficiente para estourar uma briga entre ela e o irmão J., dois anos mais novo. Os dois viviam sozinhos na casa que herdaram dos pais. As brigas não eram novidade. Mas naquela noite, além de ameaçá-la com duas facas, ele deixou marcas de agressão nos braços dela. Elisabete acionou a Brigada Militar e registrou ocorrência de violência doméstica, pela Lei Maria da Penha, imediatamente.
Vinte anos antes, Elisabete, já havia procurado a polícia para denunciar a violência doméstica que sofria de outro irmão, já falecido. Na época, sem uma lei específica para casos do tipo, ela ouviu da assistente social que deveria deixar a própria casa e procurar um albergue, se queria sair da situação. Desistiu.
Desta vez, foi diferente. Pouco tempo depois de registrada a ocorrência, ela e o irmão foram chamados para audiência de conciliação. O irmão chegou a sair de casa, por um tempo, mas voltou. Cumprindo determinação da justiça, ele se internou por nove meses em uma clínica de reabilitação para alcoolismo e abuso de drogas, antes de voltar a viver com Elisabete. Para ajudar no convívio, o 1º Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, de Porto Alegre, os convidou ainda a participar de um projeto de justiça restaurativa.
“Foi muito bom, ele falou, eu falei e em algumas coisas eu até concordo com ele. Agora, ele tem o canto dele, eu tenho o meu. Mudou o comportamento dele, ele está quieto. A psicóloga disse que ele deveria respeitar os meus relacionamentos e eu os dele”, conta Elisabete.
Os irmãos começaram a participar dos círculos organizados pelo Juizado, uma experiência pioneira no país e que já virou recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em agosto, durante a XI Jornada Maria da Penha, em Salvador, a presidente do Conselho e do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia, falou sobre o método, defendendo que a justiça continue aplicando punição aos agressores, mas aliada com tratamentos que ajudem a “restaurar o tecido social”. “Sem isso, vamos ter cada vez um número maior de litígios”, disse.
No Estado, a justiça restaurativa começou a ser aplicada em 2007, em casos que envolviam crianças e adolescentes, com o juiz Leoberto Brancher. Nos casos de violência de gênero, em 2011, no juizado da Dra. Madgéli Frantz Machado.
“Se considerar o processo tradicional, quem vai ser trazido para o Fórum? A vítima e quem praticou o fato. Quando eu falo na justiça restaurativa eu tenho a possibilidade de ampliar a intervenção. Eu tenho possibilidade de trabalhar com a vítima, os apoiadores dela, a rede de saúde, de assistência social. Da mesma forma, em relação ao autor. Por que isso é importante? Porque a partir do momento em que eu vou trabalhar em círculo, vou ter a possibilidade de saber quais as reais necessidades daquela mulher e daquele homem”, explica a magistrada.
Como funciona
Marcha contra a violência contra as mulheres | Foto: Agência Brasil
A violência de gênero é diferente de todas as outras. Por isso, o tratamento dado a ela também tem que ser, segundo a juíza. “Ela é decorrente de uma desigualdade entre homem e mulher, justamente por esses papéis sociais que são impostos. Quando é que ela acontece? Quando a mulher não se comporta conforme aquele padrão que a sociedade estabeleceu”.
Enquanto um processo judicial tradicional foca em um fato específico, que ocorreu em determinado dia, hora e local, o trabalho junto à justiça restaurativa permite que possam ir além das consequências e entender tudo o que levou àquele momento. “O processo tradicional não traz nada disso para dentro dos autos. As pessoas vão sair de lá, muitas vezes, só com uma resposta punitiva. E só ela não basta. Não vai servir pra tirar aquela mulher da situação de violência, nem para reeducar o homem”, diz.
O trabalho da justiça restaurativa para casos de violência doméstica conta com várias fases. Primeiro, pessoas capacitadas para trabalhar com casos de violência doméstica avaliam se o caso pode ser encaminhado para círculos de restauração. Ao contrário do que dizem as críticas, que o uso da justiça restaurativa seria apenas uma “desculpa” para juízes aliviarem as pilhas de processos, a seleção para quem está apto a participar do projeto é bastante rígida. Dos 7 mil casos no Juizado da Dra. Madgéli, por exemplo, apenas 45 foram encaminhados para o projeto até dezembro do ano passado. Nenhuma reincidência foi registrada.
O filtro que seleciona quem pode participar, geralmente observa pontos como 1) se as pessoas envolvidas ainda mantêm convívio; 2) a gravidade do caso; 3) se a mulher vítima de violência está em situação de vulnerabilidade ou se pode participar; e o mais importante deles 4) se as pessoas envolvidas estão dispostas, a participar, voluntariamente.
“O facilitador de justiça restaurativa precisa entender o que é a violência contra a mulher, o que é violência doméstica, entender os tipos de violência – stalking, violência psicológica, etc. Na entrevista, ele vai ter que observar se essa mulher não está sendo vítima de outras violências que, talvez, ela não perceba”, explica Ivete Machado Vargas, psicóloga do TJ-RS.
Depois de conhecer cada caso, o facilitador “desenha” o tipo de rede e círculos mais adequados para atender as necessidades daquela família. Isso inclui a lista de pessoas que serão chamadas a participar, os serviços que serão convocados para atender, o encaminhamento que será dado ao caso. Nem sempre a vítima poderá ficar frente a frente com o agressor, por exemplo.
“Quantos casos de mulheres que não têm o apoio da sua família para romper o ciclo de violência? Ainda há esse preconceito. Pais que pensam que, se a filha casou, mesmo que ela esteja sendo agredida, ela precisa manter o casamento. É muito importante fazer uma intervenção em círculo, trazendo a família dela, para que a família se convença, se dê conta da importância de ela ter coragem de denunciar e romper com a violência. Num processo tradicional, a gente jamais teria como fazer esse trabalho”, explica a Dra. Madgéli.
O projeto de justiça restaurativa, no entanto, não interfere em nada do processo criminal ou na pena do agressor. “Eu vejo ela como um instrumento excelente, mas não é para todos os casos. O facilitador tem que ter treinamento em gênero. Estamos tentando elaborar um protocolo para identificar bem o que precisa avaliar, junto com as mulheres. Elas é que estão dizendo como sentem na pele as coisas que as angustiam e que as fazem permanecer em situações de violência”, aponta a psicóloga responsável.
Rede é obstáculo
Serviços tem foco em violência sexual, mas ainda não possuem direcionamento para casos de violência doméstica | Foto: Guilherme Santos/Sul21
Um dos maiores problemas enfrentados, segundo a juíza, é a demora e a falta de serviços nas redes públicas de atendimento. Especialmente, na área de saúde. Cerca de 80% dos homens que praticam algum tipo de agressão dentro de casa têm envolvimento com álcool, drogas ou com álcool e drogas. Para as vítimas, atendimento psicológico, após os episódios, também é necessário, mas não há nenhum protocolo que as coloque como prioridade.
“Se eu precisar internar um homem, autor de violência, por uso abusivo de álcool e drogas, ele vai entrar na mesma fila, das vagas hospitalares, do que qualquer outro homem. Não existe serviço específico e violência doméstica é algo que não pode esperar. Se eu tiver que esperar um ou dois dias é tempo suficiente para acontecer algo pior”, afirma Dra. Madgéli.
A Lei Maria da Penha, a mesma que determina a criação de centros de referência para atender mulheres vítimas de violência, também determina a criação de centros de reeducação e referência para agressores. “Mesmo em relação a mulher, temos pouquíssimos centros para a mulher no Estado e em todo o Brasil. Eu não tenho conhecimento de nenhum para homens. A gente criou o grupo reflexivo de gênero aqui, para trabalhar com autores de violência, porque viu que precisava trabalhar também com eles, senão não quebra o ciclo nunca”, analisa a juíza.
Ou seja, se a rede estiver capacitada e pronta para acolher uma vítima de violência com todos os serviços que a mesma precisa, as chances de essa mulher procurar os serviços para denunciar sua situação são maiores. A reeducação também é essencial para reverter o quadro.
“A gente tem que trabalhar muito com prevenção, trabalhar muito nas escolas, porque isso acontece nos próprios relacionamentos. O número de violência domésticas nas universidades é incrível. São moças que terminam seus relacionamentos e continuam sendo perseguidas. São jovens que a gente pensa que teriam uma nova percepção, que reconheceriam equidade. Se existem nesses espaços é porque está faltando a discussão disso nas escolas”, diz ela.
Elisabete conta que descobriu há pouco tempo que o pai agredia a mãe. Ela não lembra de ter percebido nada dentro de casa, mas, acha que foi por isso que a mãe a enviou para um colégio interno, em Santa Maria, quando ela tinha 7 anos. Depois de passar pelo processo que determinou que o irmão procurasse tratamento e participasse dos grupos com foco em homens autores de violência, ela também segue “cicatrizando as feridas” graças ao projeto.
“Toda terça-feira, eu venho aqui e é muito bom. Aqui tu pode chorar, desabafar, eu me sinto bem. Tem umas colegas que têm histórias que dão um arrepio. Quando eu não venho, sinto muita falta”, diz ela, conversando com a reportagem logo após um dos encontros. “A gente é amiga, fez amizade na violência”.

Nenhum comentário:

“É chegada a hora de inverter o paradigma: mentes que amam e corações que pensam.” Barbara Meyer.

“Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado opressor.” Desmond Tutu.

“Perdoar não é esquecer, isso é Amnésia. Perdoar é se lembrar sem se ferir e sem sofrer. Isso é cura. Por isso é uma decisão, não um sentimento.” Desconhecido.

“Chorar não significa se arrepender, se arrepender é mudar de Atitude.” Desconhecido.

"A educação e o ensino são as mais poderosas armas que podes usar para mudar o mundo ... se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar." (N. Mandela).

"As utopias se tornam realidades a partir do momento em que começam a luta por elas." (Maria Lúcia Karam).


“A verdadeira viagem de descobrimento consiste não em procurar novas terras, mas ver com novos olhos”
Marcel Proust


Livros & Informes

  • ACHUTTI, Daniel. Modelos Contemporâneos de Justiça Criminal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.
  • AGUIAR, Carla Zamith Boin. Mediação e Justiça Restaurativa. São Paulo: Quartier Latin, 2009.
  • ALBUQUERQUE, Teresa Lancry de Gouveia de; ROBALO, Souza. Justiça Restaurativa: um caminho para a humanização do direito. Curitiba: Juruá, 2012. 304p.
  • AMSTUTZ, Lorraine Stutzman; MULLET, Judy H. Disciplina restaurativa para escolas: responsabilidade e ambientes de cuidado mútuo. Trad. Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de; CARVALHO, Salo de. A Crise do Processo Penal e as Novas Formas de Administração da Justiça Criminal. Porto Alegre: Notadez, 2006.
  • CERVINI, Raul. Os processos de descriminalização. 2. ed. rev. da tradução. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
  • FERREIRA, Francisco Amado. Justiça Restaurativa: Natureza. Finalidades e Instrumentos. Coimbra: Coimbra, 2006.
  • GERBER, Daniel; DORNELLES, Marcelo Lemos. Juizados Especiais Criminais Lei n.º 9.099/95: comentários e críticas ao modelo consensual penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006.
  • Justiça Restaurativa. Revista Sub Judice - Justiça e Sociedade, n. 37, Out./Dez. 2006, Editora Almedina.
  • KARAM. Maria Lúcia. Juizados Especiais Criminais: a concretização antecipada do poder de punir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004.
  • KONZEN, Afonso Armando. Justiça Restaurativa e Ato Infracional: Desvelando Sentidos no Itinerário da Alteridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007.
  • LEITE, André Lamas. A Mediação Penal de Adultos: um novo paradigma de justiça? analise crítica da lei n. 21/2007, de 12 de junho. Coimbra: Editora Coimbra, 2008.
  • MAZZILLI NETO, Ranieri. Os caminhos do Sistema Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007.
  • MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Fávio. Criminologia. Coord. Rogério Sanches Cunha. 6. ed. rev., atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
  • MULLER, Jean Marie. Não-violência na educação. Trad. de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Atenas, 2006.
  • OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A Vítima e o Direito Penal: uma abordagem do movimento vitimológico e de seu impacto no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
  • PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. São Paulo: IBCCRIM, 2009. p. (Monografias, 52).
  • PRANIS, Kay. Processos Circulares. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • RAMIDOFF, Mario Luiz. Sinase - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - Comentários À Lei N. 12.594, de 18 de janeiro de 2012. São Paulo: Saraiva, 2012.
  • ROLIM, Marcos. A Síndrome da Rainha Vermelha: Policiamento e segurança pública no século XXI. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 2006.
  • ROSA, Alexandre Morais da. Introdução Crítica ao Ato Infracional - Princípios e Garantias Constitucionais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
  • SABADELL, Ana Lúcia. Manual de Sociologia Jurídica: Introdução a uma Leitura Externa do Direito. 4. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.
  • SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e Paradigma Punitivo. Curitiba: Juruá, 2009.
  • SANTANA, Selma Pereira de. Justiça Restaurativa: A Reparação como Conseqüência Jurídico-Penal Autônoma do Delito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
  • SANTOS, Juarez Cirino dos. A Criminologia Radical. 2. ed. Curitiba: Lumen Juris/ICPC, 2006.
  • SCURO NETO, Pedro. Sociologia Geral e Jurídica : introdução à lógica jurídica, instituições do Direito, evolução e controle social. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
  • SHECAIRA, Sérgio Salomão; Sá, Alvino Augusto de (orgs.). Criminologia e os Problemas da Atualidade. São Paulo: Atlas, 2008.
  • SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal - O Novo Modelo de Justiça Criminal e de Gestão do Crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
  • SLAKMON, Catherine; MACHADO, Maíra Rocha; BOTTINI, Pierpaolo Cruz (Orgs.). Novas direções na governança da justiça e da segurança. Brasília-DF: Ministério da Justiça, 2006.
  • SLAKMON, Catherine; VITTO, Renato Campos Pinto De; PINTO, Renato Sócrates Gomes (org.). Justiça Restaurativa: Coletânea de artigos. Brasília: Ministério da Justiça e PNUD, 2005.
  • SÁ, Alvino Augusto de. Criminologia Clínica e Psicologia Criminal. prefácio Carlos Vico Manãs. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
  • SÁ, Alvino Augusto de; SHECAIRA, Sérgio Salomão (Orgs.). Criminologia e os Problemas da Atualidade. São Paulo: Atlas, 2008.
  • VASCONCELOS, Carlos Eduardo de. Mediação de conflitos e práticas restaurativas. São Paulo: Método, 2008.
  • VEZZULLA, Juan Carlos. A Mediação de Conflitos com Adolescentes Autores de Ato Infracional. Florianópolis: Habitus, 2006.
  • WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo (org.). Novos Diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005.
  • WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo de. Dialogos sobre a Justiça Dialogal: Teses e Antiteses do Processo de Informalização. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
  • ZEHR, Howard. Justiça Restaurativa. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2012.
  • ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.